Retrato de Elisabeth Lederer por Gustav Klimt vendido por US$ 236,4 milhões na Sotheby’s. crédito imagem Sotheby’s

O mercado global de arte viveu um daqueles raros momentos que redefinem hierarquias culturais. O “Retrato de Elisabeth Lederer”, pintado por Gustav Klimt entre 1914 e 1916, alcançou US$ 236,4 milhões na Sotheby’s de Nova York, tornando-se a segunda obra mais cara da história. Muito além da cifra, o quadro ressurge como um relicário que sobreviveu às ruínas da Europa e que agora resgata, diante do mundo, a própria biografia da mulher que retrata.

Elisabeth aparece envolta em um robe cerimonial chinês branco, iluminada por uma tapeçaria azul que mistura motivos orientais e formas biomórficas que Klimt absorveu de seus estudos de anatomia. A cena evoca simultaneamente o sagrado e o íntimo. O corpo permanece imóvel, mas o olhar vibra com a intensidade emocional que marcaria o Expressionismo europeu. Essa pintura marca uma virada estética do artista, que abandona o brilho ornamental do seu Período Dourado e adota uma psicologia cromática mais densa, mais humana e, paradoxalmente, ainda mais hedonista.

O destino da obra acompanha o destino de Viena. A família Lederer, uma das grandes mecenas da modernidade austríaca, teve sua coleção saqueada pelo regime nazista após a anexação da Áustria. Muitas das obras de Klimt pertencentes à família foram queimadas em 1945, quando tropas alemãs em retirada atearam fogo a depósitos inteiros para evitar que as peças fossem recuperadas. Este retrato, porém, escapou do incêndio como se carregasse uma espécie de insistência silenciosa em sobreviver.

A sobrevivência de Elisabeth também dependeu de narrativa. Diante do risco iminente de deportação, ela alegou que Klimt seria seu pai biológico. A mãe confirmou a história em declaração juramentada e um oficial nazista, ligado à família por casamento, interveio para protegê-la. A ficção tornou-se escudo. A arte tornou-se álibi. E o retrato, antes símbolo de status, transformou-se em documento de existência.

A obra foi devolvida ao irmão de Elisabeth, Erich Lederer, em 1948. Décadas depois, passou para Leonard A. Lauder, que a manteve em sua residência na Quinta Avenida, onde o azul profundo da tapeçaria se refletia nas janelas da cidade. Agora, ao atingir cifra histórica na nova sede da Sotheby’s, no edifício Breuer, o quadro não apenas reafirma o valor do modernismo vienense. Ele se posiciona como uma das narrativas mais completas da arte: beleza, trauma, memória, sobrevivência e renascimento.

O retrato ultrapassa seu valor monetário porque transcende o próprio século que o produziu. É uma vida condensada em pigmento. Um testemunho de resiliência contra o tempo, a política e o esquecimento. Uma obra que sobreviveu ao fogo, à guerra, à perda e à reconstrução. Poucas pinturas carregam tanto em tão pouco espaço.

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